A proteção jurídica e a dignidade dos animais



O cuidado com a natureza é uma questão de sobreviver com dignidade, e isso passa pela efetivação de políticas públicas que garantam o respeito por todas as formas de vida.

Por Marcelo Antonio Rocha*
A dignidade (da pessoa humana) tem uma dimensão ecológica (socioambiental) que não pode se restringir a uma dimensão puramente biológica ou física, pois contempla a qualidade de vida como um todo, inclusive do ambiente em que todas as formas de vida se desenvolvem. Portanto, o respeito à vida digna, paradigma bioético, deve estar presente na ética e no ordenamento jurídico de todas as sociedades e disponível para todos os seres que nela têm o seu habitat.
O Código Civil brasileiro reconhece os direitos subjetivos apenas aos seres humanos, pois os animais não são capazes de assumir obrigações e são considerados, por isso, apenas como bens semoventes (CC, artigo 82). É razoável entendermos que, hoje, as situações individuais devem ser protegidas em nome de algo maior, que é a manutenção da vida no planeta e que esse deve ser o fundamento atual dos direitos subjetivos. O ser humano exerce as liberdades e tem direitos na medida em que isso assegura o bem comum e garante a sobrevivência da espécie humana e da vida em sentido mais amplo e prospectivo.
Todo o reino animal é tratado como bem e o meio ambiente é considerado um serviço, a fim de atribuir-se a ele um valor econômico. Tal afirmativa soa como uma prestação. Seria essa, então, a função da natureza: atender ao cumprimento da necessidade humana?
Os animais silvestres, por exemplo, são vistos como bem comum de uso do povo, portanto, compete a todos os entes da federação por eles zelar, ainda que haja na lei referência expressa da fauna silvestre pertencer ao estado. Mas nem por isso, por se tratar de um bem de uso comum, quer dizer que os seres humanos podem usar e abusar desses animais da maneira que acharem mais conveniente.
A Constituição Federal (CF, artigo 225), considera que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações e que incumbe ao Poder Público, para assegurar a efetividade desse direito:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
O meio ambiente, incluindo-se nele a fauna, é tratado no Direito brasileiro como “bem de uso comum do povo”. Mas o fato de ser um “bem” não deve dar ao ser humano liberdade e poderes ilimitados, já que toda propriedade cumpre uma função social (CF, artigo 5º, inciso XXIII), não podendo se utilizar como bem quiser um animal, seja doméstico ou silvestre, porque ele não possui univocamente um significado econômico.
Diante do exposto, percebe-se que a dignidade da vida no ordenamento jurídico deve estar alicerçada num patamar de superação de conceitos e buscar a proteção de uma vida digna a todos os seres vivos e não apenas aos humanos. O reconhecimento do direito ao meio ambiente equilibrado, pressuposto do direito à vida, deve ser interpretado de forma a conferir uma nova dimensão à ideia de Justiça. Interpretação esta que deverá contribuir, no mínimo, para a manutenção dos ecossistemas em maior ou menor grau.
A crueldade física não está diretamente ligada a ser ou não um sujeito de direito. Tem aspecto sensorial, que deixa marca nos animais, sobretudo em seu comportamento, caso eles sobrevivam. Um animal mostra a sua agonia diante do sofrimento, por meio dos seus sinais biológicos. O Decreto 3.688/1941 vedou, na forma da lei, a crueldade contra os animais:
Art. 64. Tratar animal crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:
Pena – prisão simples, de dez a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis.
§ 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo.
§ 2º Aplica-se a pena com aumento da metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.
Na Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), o legislador se mostrou preocupado em punir e criminalizar atos cruéis contra os animais:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º - Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
Nesse sentido, principalmente a Constituição Federal e a Lei 9.605/1998 trazem uma contribuição de valor inestimável para o avanço do direito animal e da educação ambiental no país, contribuindo para a criação de uma nova ética ambiental. A preocupação ambiental hoje ilustra, na prática, uma abertura para o outro, seja o indivíduo vivo, o ser que ainda não veio a ser, os demais seres vivos, os seres não vivos e o planeta. É por isso que conceitos como responsabilidade, dignidade, simpatia, natureza e sustentabilidade devem estar implicados na reflexão sobre o Direito Ambiental. O Direito, a filosofia e a política têm papéis fundamentais neste processo. O cuidado com a natureza é uma questão de sobreviver com dignidade, e isso passa pela efetivação de políticas públicas ambientais que garantam o respeito por todas as formas de vida.
*Marcelo Antonio Rocha é professor de Introdução ao Pensamento Filosófico, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica da Dom Helder Escola de Direito, instituição pela qual se graduou em Direito; bacharel e mestre em Filosofia.

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